Alguém que me lê e eu não vejo.

2005/09/18

Quero um daqueles sonhos que ficam para sempre,
quero um desses sonhos que se pousa no granito dos bancos de jardim,
daqueles em que se podem estender até ao rio,
e ficar ali a olhá-lo,
como se fosse meu e ao mesmo tempo pertencesse à turbulência das águas.

Nem as mãos que abro como asas,
para pousar na superfície rugosa da minha existência,
chegam para sustentar esse sonho, que é a ausência destas lágrimas.
Nem esse voo liberto, nem esses sentimentos alados na minha boca,
São suficientes para te ter aqui comigo.

Onde é que o rio encontra o mar e os sonhos se misturam com os peixes?
Quero embarcar na corrente fluvial com odor a maresia e rasto de piscares de olhos feéricos, a escorrer de ilusão e conforto.

2005/09/14


Pele, corpo nu, e água turva envolvendo-o, escondendo-o: apertas as mãos contra os olhos, olhos cansados, olhos aguçados que te fazem verter esse líquido vigorante, que escorre enleando, misturando-se com a água que banha o teu abismo. Escorre para onde a gravidade o puxa, no seio daquilo que é belo e onde existe algo mais belo. No centro de um planeta está outro, e as chamas solidificaram e são feitas desse magma que é rocha ou que és tu dentro de ti. Tudo em ti tão natural, como se natural quisesse dizer apocalíptico. E só quero puxar-te para aqui, desvendar-te as mãos e os olhos, as sobrancelhas molhadas, e o teu receio indiscriminado, confundido com a tua luz. Queria tanto aninhar-me na tua luz, tanto...

2005/09/06


Calçada

Passo dos dedos na calçada,
e cada uma das suas peças
como prolongamento dos meus dedos,
e os meus dedos sorvessem a vida.
Toque inequívoco, no chão, nos passos,
a saber a terra e a tudo, nos meus nervos, nas entranhas.
Calçada, rua, solooooooooooooooooo.....
Como me delicio com o seu toque,
textura enrugada sob mim,
lágrima enrolada na areia dos sapatos.
Passeios de mãos dadas, a arranharem-me a pele,
E tu e eu e nós e todos e tanto, ali.
Eu a calçada, o mundo.

2005/09/01

Virei a esquina e vislumbrei a Sagrada Família majestosa, incompreendida, invadida e foi quando tive aquela sensação de escuridão apesar das pálpebras abertas... como naquele dia de Agosto arredado, em cima da cerejeira a tropeçar na incandescência do sol. Ali ajoelhada, diante de mim, a sua grandiosidade catedralesca, nascida de pequeno fragmento da genialidade de um só homem. Esse homem que emanava uma sensibilidade devastadora e que ninguém tocava... alguém para quem a palavra terminou debaixo dos carris metálicos de uma existência inacabada.
Apenas um olhar pode provocar essa mesma sensação que hoje evoco: o mesmo negro, que pode ser os meus olhos fechados a cair de uma escada, a surgir inesperadamente ao virar da esquina. Esse sentir que nem de lágrima se disfarça, é tão só um cambalear psicótico de encontro às paredes feitas de músculo cardíaco que aqui encerro... assim tão longe da luz. E esse encontro, ao virar da esquina, com uma plaquinha de rebordo de cetim azul com caracteres cravados, que nem sempre identifico, está sempre a um milímetro de mim. Não existe qualquer mistério, sou apenas capaz de me encontrar com ausência de luz tal como muitos e tudo porque as outras pessoas estão do outro lado.

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