Alguém que me lê e eu não vejo.

2005/08/28

Adormecer...


Um torpor, para terminar esta noite,
germina pelos recantos da minha alma
deixada ao acaso da vida sem aviso.
É por não ter presenças concretas aqui,
excepto essa ascensão invertida de cócegas
a roçar no meu sossego, que me vou deitar,
sempre sem saber qual o pensamento com que me irei cobrir,
nem ao lado de que lâmina afiada do meu ser me irei aconchegar:
a sina de quem, errante ou não, teima em persistir amando.

2005/08/24


E depois chegam esses dias, enfeitados com a bruma inequívoca, que cheira a escárnio inteligível em todos os cérebros por aí. O que não falta são cérebros e carne, carne por aí, carne que queima, que se debate ofegante, por um lugar melhor, por mais minutos, por mais horas inventadas, estropiadas. O que não falta é carne e o que não falta é alma... nem carne, nem alma, nem coração. Nada parece faltar. Nem se vai embora esse debate cruel, entre os vales e as montanhas, não desaparecem os vales que querem chegar às montanhas nem as montanhas que se querem desprover da sua imponente e irredutível beleza só porque se sonharam vales um dia.
Esquecem-se mesmo de que são banhados pela mesma água? Que são a mesma carga positiva, em qualquer canto, a atrair a carga negativa? Em qualquer pulmão, em qualquer cristal, em qualquer punhado de terra? Quando me esqueço disto, e são muitas as vezes, em que os fiapos de tudo o que é resto estão impregnados na minha existência, em que sei que sou menos. Esqueço-me que tudo tende a anular-se para se estabilizar e que isso significa vencer.
E chegam mais dias em que sei que choro só porque parecem não existir sinapses a levarem-me até junto de ti, mas desfiladeiros, intransponíveis pelo meu constante receio, por tudo aquilo que é orgânico em mim e que, mesmo sem querer, me esmaga. E escorre o sangue em vez da metafísica, e escorrem as lágrimas em vez dos números e transpiro em vez de pensar. E sinto, de uma forma tão dementemente avassaladora, como caminhar sobre bocados de vidro cortantes, já banhados no meu sangue. E no fundo, tudo se conduz a uma demência temporária e somática que se nutre graças a um somatório enxovalhado de páginas insignificantes.

2005/08/12


Nós



O ar deslizou, levemente comprimido pelos teus lábios, que incrustaram o seu travo doce nas partículas dessa brisa que insurgiu do teu suspiro azul.
Moléculas que se conjugaram, naquela noite indiferente, com os meus receptores desprevenidos, emulsionando todos os perfumes entrenhados na minha pele geometricamente desenhada para te tocar.
Sentia algumas camadas da tua epiderme, sob os meus dentes, débeis, subjugadas à inquietação do meu desejo envolvido nas tuas pétalas polvilhadas de ternura.
E foi no céu, que os meus perfumes se cruzaram com o teu suspiro entrelaçando-se na fragilidade do meu toque no teu... então desceram sobre nós na forma da palavra amor.

2005/08/06

Beleza

Imagino-a como um ponto denso e cerrado,
e ao mesmo tempo uma mancha inteligível,
caída na graça de cada ser.
Difícil será encontrar aquele
que conseguiu transpor os seus sentidos para lá dela...

É uma estrela, é um mar, é um sol, é uma luz,
Que todos conseguem sentir: sístoles em uníssono!
Ninguém parece poder tocar-lhe,
mas todos se tocam, todos se sentam no mesmo banco de jardim com ela.
Todos caminham na rua com ela por perto.
Enroscada em cada fio de cada conjunto de cabelos,
Dorme com todos, todos aqueles com pele e ouvidos e olhos e boca.

Ouvi um segredo, que dizia,
que para conquistarmos o mundo,
bastava saber senti-la, ainda que a fingir.
Eu queria apenas soprar o mansinho oxigénio,
ateando esse fogo que reside em nela,
e que nas pontas dos meus dedos foi um dia proscrito.

2005/08/04

Visão

Vi-te: um relance do tempo, que preencheu o meu olhar.
E fossem todas as visões cascatas ascendentes,
efusões de gotas comemorando o seu esplendor,
o seu brilho intenso, que exulta como quem agride,
na soma das suas formas de beleza e de júbilo.

Não. Essa tua visão inebriante que cortou, dilacerou, sorveu
em gestos proteicos toda a inocência daquele meu dia.,
esse trespasse de luz através dos meus olhos,
enrugou o meu coração até ao lixo.
Depois sentou-se calma a olhar o mar,
o mar ébrio de tantos olhares, menos do meu,
que se arrasta ainda nas pedras, no cimento da rua.

Mas para que me ouças a voz cansada: não vou ficar por aqui!
O aqui é um limite rente, transponível.

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