Alguém que me lê e eu não vejo.

2005/07/26

Cobri-me com esse manto,
de pele nua de mulher,
e caminhei nas ruas, leve,
pés alados como a brisa.

Reencontrei em cada passo o meu caminhar,
convidei as provocantes montras para jantar.

Já falei da brisa nos meus pés,
o ar o vento, meus vassalos,
serviram-me escaldada a sensação perdida...
...encontrar-me ali, para o mundo.

2005/07/22

MEU AMIGO

MEU AMIGO, não sou o que pareço.

A aparência
é apenas um vestido que levo,
um vestido cuidadosamente urdido
que me protege das tuas perguntas,
e a ti do meu desinteresse.

O «eu» que há em mim,
meu amigo,
vive na casa do silêncio,
e ali ficará sempre,
irreflectido, impraticável.

Não te levarei a acreditar no que digo,
nem a confiar no que faço,
porque as minhas palavras
mais não são que os teus próprios pensamentos
convertidos em som,
e as minhas obras
são as tuas próprias esperanças
materializadas em actos.

Quando dizes:
- O vento Sopra de Leste, digo:
- Sim, sopra sempre de Leste;
mas não quero que saibas
que então o meu espírito
não se ocupa do vento,
mas do mar.

Tu não podes entender os meus pensamentos,
filho do mar,
nem me interessa que os compreendas.
Prefiro continuar sozinho
com o mar.

Meu amigo,
quando para ti é dia,
para mim é noite;
mas nem por isso deixo de falar-te
da luz do dia que banha os cumes
nem da sombra cor de púrpura
que avança pelos vales;

Porque tu não podes ouvir
chegou a um terço:
as canções da minha obscuridade,
nem podes ver as minhas asas
adejando contra as estrelas;
e não me interessa que ouças ou vejas
o que há em mim.

Prefiro estar sempre
sozinho na noite.

Quando sobes ao teu céu,
desço ao meu inferno.

Então chamas-me
através do abismo intransponível
que há entre ti e mim:
- Companheiro ! Camarada !
E eu respondo: -
Porque não quero
que vejas o meu inferno.

Ficarias cego com as chamas,
e asfixiado pelo fumo.

E eu amo demasiado o meu inferno
para te deixar visitá-lo.

Prefiro estar sozinho no meu inferno.

Tu amas a Verdade, a Beleza, a justiça,
e eu para te comprazer
digo que estou de acordo contigo
e que está certo
que ames essas coisas.

Mas, no fundo do meu coração,
rio-me do teu amor por elas.

Contudo, escondo-te o meu riso,
porque prefiro rir-me sozinho.

Meu amigo,
és bom, prudente e sensato;
mais ainda, és perfeito.

Por mim, falo contigo
com sensatez e cautela, mas...
estou louco.

Oculto a minha loucura
com uma máscara.

Prefiro estar louco sozinho.

Meu amigo,
não és meu amigo.

Mas como fazer-te
compreender isto?

O meu caminho
não é o teu caminho,
e, contudo, caminhamos juntos,
de mãos dadas.

Kahlil Gibran
in O Louco

2005/07/21

Um dia estava a olhar,
olhava como quem não olha,
sem vontade nos olhos!
No entanto, nu cume deste sentido,
encontrei a tua visão...
...uma visão quieta e distante.
Fizeste-me parar sem parares um segundo!

E esse descernimento,
dessa tua convicta atenção,
trouxe-me apenas a certeza
de que não havia de partir
sem ta roubar!

2005/07/20

Sentei-me aqui, como de costume,
o costume brando de te olhar o olhar estudado,
onde gentilmente me sorriste, com esse sorriso pontiagudo...
que fere de tão intenso e que nasce e morre no teu rosto,
encostado ao vidro, despido de enredos e intrigas.

E o que posso eu esperar da vida,
deste caminho todo que percorro abstractamente?
O que posso esperar dela?
Se tudo o que ela me ensinou foi a apaixonar-me pela simplicidade destes momentos?

2005/07/17

Mutação


Expirou.
Edificado com pedaços fictícios:
a sensualidade, a confiança, o arrojo,
o balanço perfeito entre a determinação e a indecisão atraente,
uma leve dose de mistério, de inocência
e a uma inteligência exacerbada, mencionada, registada.

Pousou noutro cantinho.
Aninhou-se, borrifou umas gotas de perfume fádico
sobre os ombros nus e lisos.
Libertou o olhar hipnótico
enfeixado com estilhaços da sua existência.
Renasceu com a beleza maior e mais falsa.
Emana diariamente o seu sorriso,
onde esconde, atrás de uma cortina áspera, agulhas afiadas
para afastar todos os mundos do seu canto.

Só sei de Dezembro.
Sei das unhas de metal a rasgarem a carne das minhas costas,
do sangue a chegar a um lençol preto.
Foi o que precisei, de algo que
me fizesse sangrar como uma doença real,
para saber que tinha sido o seu fim ali.
II.

A alma vai palpitando,
numa cadência triste e sentida.
De cruel conhece o mundo,
um punhal da bruma emergido.
Nos seus cantos sente o vento,
uma manta generosa de frio.
Dos seus dedos jorra sentido,
uma mão inerte que a morte eterniza.
Saltitante e a cores,
num corpo que vagueia sem ir,
transbordante de destino
e a sorrir de sonho...

É neste dia, que a fingir, é minha.
Toco-lhe com a consciência.
Beijo-a com a sensação.
Arrasto-a comigo no perdurar do tempo.

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