Alguém que me lê e eu não vejo.

2006/11/20

Essa náusea que sinto quando reconheço
a futilidade das minhas lágrimas.
A náusea que chega para confessar,
o meu desejo de que tudo isto se esvaia,
que desça paralelos abaixo e escorra
para o ribeiro quase tão poluído como eu.

Não estou condenada a ser eu própria, não!
Mas para onde ir se não encontro em mim aquela que deveria ser?

PERDOA-ME: não consigo ir nem ficar.

2006/11/19

Cada dia é mais evidente que partimos
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudades nem terror que baste.


Sophia de Mello Breyner Andresen
Antologia
Círculo de Poesia
Moraes Editores
1975

2006/11/06


Incontáveis os instantes que tenho passado a respirar,
e aqueles em que quis tocar no céu,
naquele que pensava ser veludo morno.
Não, não os consigo contar, ter-lhes perdido a conta...
Assim remonto à sensação de infinito perdida,
somando-lhe os dias em que não consegui chegar-lhe,
mais aqueles em que achei que lhe toquei.

Ah meu céu amigo, essas nuvens que te encobrem,
que te aconchegam, que te abraçam,
que me fizeram deixar de poder sonhar contigo,
essas nuvens... quem me dera ser uma delas!

Talvez se se me fosse a densidade impura,
sim, se também eu fosse um fiapo intocável,
também eu seria perfeita e não sentiria
esta absorção de mim pelo mundo,
não sentiria esta ausência que grita: o vazio.

Nuvens: invejo-vos espalhadas, viajantes.
Fecho os olhos.
Evaporo-me e condenso-me em mim mesma.

2006/11/04

Quando escutares o violeta que escorre do céu, pousado nas tuas mãos, saberás. Então apenas poderei estender as minhas duas mãos e tranformar as tuas em quatro.

2006/10/30

Quando as ervas se tocam, entrelaçadas ao ritmo do vento, sabem que são feitas da mesma matéria. Ainda que não olhes para elas, lerás as ervas um dia nos meus olhos, assim que aprenda a abri-los e deixá-los tropeçar com as correntes atmoféricas.

2006/10/23

Hoje, inesperadamente, recebi um presente: Natália Correia!



Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.

2006/10/09


Fito com o pensamento a tua imagem: a pétala branca a tocar ao de leve no teu lábio.

Pequenina e sem a tua mão a segurar a minha é assim que os meus passos se tornam mais curtos, na tua direção.

Escorre dentro de mim este sentir adstringente, a densidade de te saber não feliz.

2006/09/08

Lembrar-me-ei disto: quando a montanha voltar, com a sua supremacia enaltecida pela falsidade da luz da lua eu própia a rasgarei com as minhas unhas. Prefiro o meu vale à tua subida, que não me quer lá no topo, mas vítima da queda por ela abaixo. Não cairei novamente.

2006/09/07


- Ouvi a música que me faz lembrar de ti...
- E depois?
- Depois verti uma lágrima de saudade.
- Gostas demasiado de mim.
- A palavra demasiado não existe associada ao verbo gostar.
- Já pensaste que nunca vou gostar de ti assim.
- E na minha mão, consegues segurar?
- Às vezes com força.
- E esse às vezes pode acontecer sempre?
- Sempre.
Olho em volta branco e castanho, lisa e rugosa, a parede. Encostada a ela a cabeça fica mais leve. Choro.
- Porque choras? Era lá preciso!
- Sim era. Porque me trouxeste da lua.
- Estou cansado, já devias ter ido.
- Vou já. E não volto.
Os risos entoam. E lá fora um monstro de lágrimas, tenta esconder-se em frinchas infantis da rua. Sim também pode ser preciso chorar. As gotas da chuva continuam a rir-se, brincam em grupo, escorrem calçada abaixo.

2006/09/04

Repúdio pela palavra amor,
o mandamento dos novos tempos.

Corações desencarecerados: punição,
a pior de todas elas - desprezo.

2006/09/03

Agora

Não vou traçar, no mundo, linhas rectas.
É isto. É aquilo.
Sou só eu:
linha curva, esguia,
contornado as esquinas dos dias.
E perpetuando-me sobre os espinhos
posso ser tudo.
Um dia

Um ninho de tecido áspero,
o seu rosa pálido,
o rosto infesto com o teu sorriso,
o sarcasmo da tua voz.

Pinto este quadro
enquanto no meu peito se desenha
com metal rubro o pesado momento.

Auguraste as palavras,
palavras que pensaste
serem palavras postas em pedra.
Mordeste cada uma dessas sílabas,
cada nota desse canto,
um suspiro amargurado,
mas eram apenas peças de mim.

2006/09/01


Aqui sentada, estou quieta e ainda assim procuro esse ruído incessante. Esse pedaço de vulgaridade que aqui se encerra, mas que teimo em não reconhecer por detrás da minha cortina hoje púrpura e não azul.

Sou diferente das montanhas sendo igual a elas, lá no alto só, no sopé abençoada. Verde nestas palavras, grama, esconderijo de vida.

Ao longe ainda ouço... Já se ouvem fiapos da tua voz. E entre duas palavras solta-se um rasgo de adeus.

2006/08/22

Queria sentir a dor dessas feridas,
que me arrastaram colina abaixo.

Queria sentir o espasmo do sol nos meus olhos,
as pálpebras semi-cerradas, aguardando-te.

Queria usar a palavra amor e o seu aconchego.

Queria gritar, este grito que não cabe nas vibrações atmosféricas, que não cabe em canais e fluidos nem membranas, queria dar um grito que me calasse. Queria que as feridas doessem e vertessem todo o sangue. Queria sentir as agressões das paredes, nódoas negras do despertar. Queria esse cavaleiro andante que não existe, queria-o comigo, para me levar de negro na noite, para onde não conheço.

Encerrando-te te consumo: vida.
Nada mais.

2006/07/26

Felicidade

O amplexo do mundo a embalar-me
na harmonia do compasso do tempo da vida.
Este berço oscilando entre as correntes.

Não tenho muitas vezes a ideia de ser feliz,
mas muitas vezes sou-o.
Nem sempre as repetições fazem sentido. É raro fazerem sentido para muita gente. Mas neste cantinho fez todo o sentido. Como algo que faz sentido repetir-se porque se sente ou se pensa ou porque se deixa de sentir ou pensar. Porque se quer acreditar, ou rir, de algo que se repete. Ou até mesmo, na exaustão da repetição, fluir de encontro ao esquecimento.
MEU AMIGO


MEU AMIGO, não sou o que pareço.

A aparênciaé apenas um vestido que levo,
um vestido cuidadosamente urdido
que me protege das tuas perguntas,
e a ti do meu desinteresse.

O «eu» que há em mim,
meu amigo,
vive na casa do silêncio,
e ali ficará sempre,
irreflectido, impraticável.

Não te levarei a acreditar no que digo,
nem a confiar no que faço,
porque as minhas palavras
mais não são que os teus próprios pensamentos
convertidos em som,
e as minhas obras
são as tuas próprias esperanças
materializadas em actos.

Quando dizes:
- O vento Sopra de Leste, digo:
- Sim, sopra sempre de Leste;
mas não quero que saibas
que então o meu espírito
não se ocupa do vento,
mas do mar.

Tu não podes entender os meus pensamentos,
filho do mar,
nem me interessa que os compreendas.
Prefiro continuar sozinho
com o mar.

Meu amigo,
quando para ti é dia,
para mim é noite;
mas nem por isso deixo de falar-te
da luz do dia que banha os cumes
nem da sombra cor de púrpura
que avança pelos vales;

Porque tu não podes ouvir
chegou a um terço:
as canções da minha obscuridade,
nem podes ver as minhas asas
adejando contra as estrelas;
e não me interessa que ouças ou veja
so que há em mim.

Prefiro estar sempre
sozinho na noite.

Quando sobes ao teu céu,
desço ao meu inferno.

Então chamas-me
através do abismo intransponível
que há entre ti e mim:
- Companheiro ! Camarada !
E eu respondo: -
Porque não quero
que vejas o meu inferno.

Ficarias cego com as chamas,
e asfixiado pelo fumo.

E eu amo demasiado o meu inferno
para te deixar visitá-lo.

Prefiro estar sozinho no meu inferno.

Tu amas a Verdade, a Beleza, a justiça,
e eu para te comprazer
digo que estou de acordo contigo
e que está certo
que ames essas coisas.

Mas, no fundo do meu coração,
rio-me do teu amor por elas.

Contudo, escondo-te o meu riso,
porque prefiro rir-me sozinho.

Meu amigo,
és bom, prudente e sensato;
mais ainda, és perfeito.

Por mim, falo contigo
com sensatez e cautela, mas...
estou louco.

Oculto a minha loucura
com uma máscara.

Prefiro estar louco sozinho.

Meu amigo,
não és meu amigo.

Mas como fazer-te
compreender isto?

O meu caminho
não é o teu caminho,
e, contudo, caminhamos juntos,
de mãos dadas.


Kahlil Gibranin
in "O Louco"

2006/07/17

Gosto quando o teu sopro me surpreende!
Escondes a lua no teu cabelo para eu descobrir.
Ofereces-me o teu coração no doce toque do céu caído na minha pele.
E apenas o teu olhar basta para o meu sorriso ser eterno.

2006/07/06

Não sei.
Miragem

Queria sentir-te aqui ao pé de mim, como achava que estavas antigamente.

Ou seria o teu sorriso de lua, a Norte do mundo, minguando por dentro e crescendo no papel emaranhado da noite?
...
...
...
Não sei se quero continuar a não te encontrar na minha miragem.

2006/07/05


A história da cortina azul...

Pintei-te de azul, como doutras vezes, foi então que me apeteceu contar a tua inebriante história que de inebriante talvez tenha apenas a brisa. Esse compasso que marcas descompassada, que deixa as suas marcas no meu corpo irregular. E é bom lembrar-te assim: ondulante! De veludo! Tocando-me apenas ao de leve e assim acolhendo-me. Sempre a fingir-te ininteligível num vale perdido dentro de mim...
Fui pintando de azul esse teu veludo até ao dia em que apareceste noutra tela, plágio de brisa leve. Tela bela, bela tela encerrou os aplausos de quem leu essa tonalidade azul. Os músculos a embaterem e a darem-te uma forma diferente.
Voltaste, julguei que com sabor adúltero. Contudo, encobriste-me, envolveste-me no teu refúgio quase feérico. As minhas pálpebras encostadas no escuro, permitiram-me que me guiasses assim. Reencontramo-nos num momento chamado ternura, escondido debaixo da minha cama. Continuo a pintar-te de azul, deixo que me guies, incansável, sob o teu manto de ternura.
Porque será? Serão que as palavras vos repudiam? Ou será que refulgem e temeis o ardor do seu brilho? A lágrima sentada na porta da noite descai suavemente, recolhendo-se aos seus recantos ondulantes. O sorri esbate-se escada acima, também ele preferiu encabulado a sombra da cortina de veludo azul. Ajoelhou-se na ausência a presença do nada.

2006/06/18


Beijaste-me com a tua luz, e com uma lágrima retribuo aquilo que não se retribui: beleza.
Feiticeiro

Conhecendo-te, enxergo os espinhos que deixas no tecido acetinado verde-salsa. Pronuncio de Natureza íngreme, cortante, que intencionalmente escondes com o teu sorriso lavado. Ainda bem que os elementos me deixam falar-te assim, porque falar-te assim é tudo que tenho, no seio desse sorriso feiticeiro. Feiticeiro, que não é a primeira vez que assim te chamo. E que tu não ouves. E que ninguém sabe. Rasgam-me esses teus murmúrios com que enganas quem quer ser enganado. Aos poucos vejo morrer quem quer viver, no teu feitiço.
Arrogante ego, trespassas com a tua faca disfarçada de pena os corações menos atentos.
Encubram-se, com um manto de noite, ou de indiferença! Continuarmos a ser é o que nos resta, é o que nos torna grandes nesses pequenos suspiros de dor.

2006/06/10

Esculpir-te suavemente,
Um de cada vez,
Os degraus do tempo para cima,
Removendo as arestas cortantes:
Era assim que te desejava – poema.


Contudo, naceste vertigem:
rasgo de mim dentro de mim.

2006/04/12

O meu abismo reencontra-se comigo,
No canto esculpido em forma de lágrima.
Queria ele ser céu, mas é vale.
Queria eu rasgar as mãos, que afogam este rio.

Abraço as palavras como se a sua força me removesse de dentro de mim.
Tantas as vezes que o mundo me faz querer sair de dentro de mim...

2006/03/26

Quantos destes sorrisos não são fabricados nas nuvens?
Nuvens do céu, fiapos de atmosfera ímpios.
Renego o ar condensado que nos turvou a visão.
Renego estes sorrisos, dissipados, no escorrer da altitude.

E o ruído escangalhado dos dias,
a lembrar-me do teu medo do silêncio.
Porque insistes em não parar?
Não paras essa emissão,
o amontoado de notas irregulares
que concebem o teu canto.
Tens medo de ouvir...
...ouvir o quê?
O quê?
O quê.

2006/02/24

Para quê doer tanto?...
quando os sopros da brisa se propagam baixinho,
quando a temperatura amena deixa a pele rosada?

Para quê não sei.
Os sorrisos, ao fundo, ouço...
Gritam. Ilusão.

2006/02/14

Dos dias de amanhã

Sentirei falta disso.
E de uma tecla por premir.
Dos dias de hoje

Eu sinto falta disso.
Dos dias de ontem

Ainda me lembro dos tijolos salteados da praça.
As notas não cabem aqui, agarravam as vibrações das partículas,
Como às mãos do parapeito que dá para o mar.
Era assim que as pessoas se encontravam umas às outras:
na praça...
...várias camadas de excipientes sobrepostas.
O travo insípido da madrugada sabia a silêncio e a algumas luzes acesas.
As teclas esbatidas da impressão dos dedos,
o som arremessado por de entre os dentes que rangem.
Calculados os segundos, enchiam os cafés de estômago, e o fumo de pulmões,
o mimetismo dos dias, o ritmo.
Não chorei para que fizesse sentido, não foi por isso.
A sucessão destes momentos na praça,
no meu inspirar marginal,
padronizava a ausência de busca pelo principio activo da existência.
E eu sentia falta disso.

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