Alguém que me lê e eu não vejo.

2005/12/31

Um encerrar de pálpebras ligeiro e a tua imagem instantânea em mim.
A intersecção de dois caminhos, que jamais se cruzariam se não fosse o vento dos teus dedos dedos. Partirás de novo, sorrateiro sobre as pedras da calçada, que seja bom o teu encontro com o infinito.

2005/12/30

Tu.

Riste enquanto davas aqueles passos.

Não estudei as respostas do teu corpo.

Mas lembro-me do escorrer do teu riso visceral enquanto davas aqueles passos. Como eu os recordo!...
Como eu os recordo?

Cada passo uma pequena agulha a trespassar o calibre dos meus ossos. Irriguei dentro de mim o teu riso com lágrimas e medula.

Estavas só. Mas a palavra só é a palavra só para ti, nada mais. No dia antes do dia. Foste encontrar-te ali.
Ali reencontraste a dor e eu vi-te.

Temo em ti essa solidão.
Temo-a em mim, entranhada no meu egocentrismo cutâneo.

Reconheço que a tua essência cheira a baunilha e não a pobreza.
Reconheço que te banhas num mar muito mais completo que eu, com mais jóias e mais corais. Reconheço-te a brisa dos passos.
Reconheço-te nos passos que eu não teria dado.
Reconheço aqueles que, como tu, caminham.
Aqueles que como tu caminham.
Reconheço os que se repetem, como tu e eu.
Reconhecer não é tornar-te importante, mas visível.

Agora já te conseguimos ver.
Nunca ninguém te pôde roubar a ausência de luz.

2005/12/22

Despedida

Até que enfim... Os Irras e os Ufas caminham de mãos dadas para bem longe, por detrás daquela colina já não vejo essas interjeições ansiosas de outros tempos, só o suspiro: o compor do oxigénio no meu sangue. A respiração serena restabelece-se em comunhão com o travo amargo da noite, o aroma gélido da solidão, o saber que nunca mais naquele cume surgirá de novo aquele sol.
Percepção demorada, em lenta câmara, nunca lá esteve, afinal eras tu que mo mostravas, ainda eu pequena, ainda eu absorvida naqueles sonhos idílicos, naqueles prados de ironia cintilante, eras tu naquele pedaço de papel dourado recortado, que me mostravas o sol, e era o sol que eu via. Agora sei que ele nasce do lado oposto, não naquele cume, nem no mar, nem na brisa.

Ainda é na sua existência, que sinto que me sinto por entre os insterstícios do tempo. O que fez ele com o sol e comigo e com o mundo?

O sol nasce sempre. Do lado oposto, irradiando sorrisos inesperados a cada segundo que eu não vejo.

O mim e o tempo, sou menos pequena, menos dourada, menos caminhante mas mais arrepiada.

O mundo é quem me arrepia, com o seu sopro e com os seus gritos.

Gritos que perduram, sopro que vagueia.

2005/12/14

Fundiu o seu corpo com a relva,
O tom inquieto da melanina, beijada pelo sol...
A pele a cobrir-se de verde,
o toque impregnado do brilho latejante ,
o perfume inconfundível,
esse jazer disfarçado de sorriso a montante.
A perfeita simbiose: as veias, os vasos.
A raiz e o cabelo indistinguivel.
A captação do sol, o respirar, o absorver, a água, chuvas, terra, tudo, num só.
Tudo para ter tudo.
E ser um só que nada perde.
Terra, vegetal, corpo, humano,
ocultando a margem ao rio.

2005/11/14

Não escrevo.
Não escrevo.
Não quero dizer mais que há mãos elásticas, ressuscitadas,
a consumirem-me: simbioses com os meus tornozelos, arrepios de dor.
Deitada, com o rosto colado ao asfalto áspero,
é assim que a sua ausência de olhos me quer ver.
Não quero mais imprimir esse sabor corrosivo nos meus dedos,
não quero mais que as palavras sucumbam num mar deste travo.

2005/10/27


Mercedes!!! Onde estiveste? Como foi possível? Nem consigo imaginar-te assim, tão só, tão derradeiramente só, depois de tudo o que me deste, depois do quanto preencheste muitos dos meus vazios com a tua voz!
Tão espalhada pelo mundo, e tão cheia de ausências em cima de uns lençóis, tanto tempo. Ainda bem que te aproximaste Dele, só isso me faz despoletar o sorriso esmorecido. Oh Mercedes... ouço as tuas palavras e sei que jamais existirá algo que as consiga arrancar de mim: Es tan grande, la vida... Me he dado cuenta de que la tomamos muy a la ligera.

Ouço repetidamente o teu eco quente: No te entregues corazón libre....

Ainda bem que voltaste.

2005/10/22

A tua pele, tão doce, tão primaveril,
embrulhada no cobertor intenso,
quente de Outono... encostado a mim.
O ardor da chuva ácida, respingando,
tentando pousar nas minhas glândulas,
mas sempre lá fora, lá fora, o lá fora.
E lá fora estava eu e os meus electrões,
a fugirem de mim, do momento,
de tudo que era o ali.
As veias a emergirem da pele transparente, azuis, como o sangue vermelho, verdadeiras. O vazio ansioso a arfar, encostando-se à minha testa, provocante.


Querer tanta coisa, e ser tudo ao mesmo tempo, e tentar sê-lo, e falhar...
Não ser vento, nem chuva, nem mar, nem rio,
Ser só gotas, ou sopros incompletos...
Querer dizer-te adeus e abraçar-te,
E fundir os meus músculos nos teus.
Chorar, não com lágrimas, mas com água,
Aquilo pelo que não se chora: inexistência.

2005/09/18

Quero um daqueles sonhos que ficam para sempre,
quero um desses sonhos que se pousa no granito dos bancos de jardim,
daqueles em que se podem estender até ao rio,
e ficar ali a olhá-lo,
como se fosse meu e ao mesmo tempo pertencesse à turbulência das águas.

Nem as mãos que abro como asas,
para pousar na superfície rugosa da minha existência,
chegam para sustentar esse sonho, que é a ausência destas lágrimas.
Nem esse voo liberto, nem esses sentimentos alados na minha boca,
São suficientes para te ter aqui comigo.

Onde é que o rio encontra o mar e os sonhos se misturam com os peixes?
Quero embarcar na corrente fluvial com odor a maresia e rasto de piscares de olhos feéricos, a escorrer de ilusão e conforto.

2005/09/14


Pele, corpo nu, e água turva envolvendo-o, escondendo-o: apertas as mãos contra os olhos, olhos cansados, olhos aguçados que te fazem verter esse líquido vigorante, que escorre enleando, misturando-se com a água que banha o teu abismo. Escorre para onde a gravidade o puxa, no seio daquilo que é belo e onde existe algo mais belo. No centro de um planeta está outro, e as chamas solidificaram e são feitas desse magma que é rocha ou que és tu dentro de ti. Tudo em ti tão natural, como se natural quisesse dizer apocalíptico. E só quero puxar-te para aqui, desvendar-te as mãos e os olhos, as sobrancelhas molhadas, e o teu receio indiscriminado, confundido com a tua luz. Queria tanto aninhar-me na tua luz, tanto...

2005/09/06


Calçada

Passo dos dedos na calçada,
e cada uma das suas peças
como prolongamento dos meus dedos,
e os meus dedos sorvessem a vida.
Toque inequívoco, no chão, nos passos,
a saber a terra e a tudo, nos meus nervos, nas entranhas.
Calçada, rua, solooooooooooooooooo.....
Como me delicio com o seu toque,
textura enrugada sob mim,
lágrima enrolada na areia dos sapatos.
Passeios de mãos dadas, a arranharem-me a pele,
E tu e eu e nós e todos e tanto, ali.
Eu a calçada, o mundo.

2005/09/01

Virei a esquina e vislumbrei a Sagrada Família majestosa, incompreendida, invadida e foi quando tive aquela sensação de escuridão apesar das pálpebras abertas... como naquele dia de Agosto arredado, em cima da cerejeira a tropeçar na incandescência do sol. Ali ajoelhada, diante de mim, a sua grandiosidade catedralesca, nascida de pequeno fragmento da genialidade de um só homem. Esse homem que emanava uma sensibilidade devastadora e que ninguém tocava... alguém para quem a palavra terminou debaixo dos carris metálicos de uma existência inacabada.
Apenas um olhar pode provocar essa mesma sensação que hoje evoco: o mesmo negro, que pode ser os meus olhos fechados a cair de uma escada, a surgir inesperadamente ao virar da esquina. Esse sentir que nem de lágrima se disfarça, é tão só um cambalear psicótico de encontro às paredes feitas de músculo cardíaco que aqui encerro... assim tão longe da luz. E esse encontro, ao virar da esquina, com uma plaquinha de rebordo de cetim azul com caracteres cravados, que nem sempre identifico, está sempre a um milímetro de mim. Não existe qualquer mistério, sou apenas capaz de me encontrar com ausência de luz tal como muitos e tudo porque as outras pessoas estão do outro lado.

2005/08/28

Adormecer...


Um torpor, para terminar esta noite,
germina pelos recantos da minha alma
deixada ao acaso da vida sem aviso.
É por não ter presenças concretas aqui,
excepto essa ascensão invertida de cócegas
a roçar no meu sossego, que me vou deitar,
sempre sem saber qual o pensamento com que me irei cobrir,
nem ao lado de que lâmina afiada do meu ser me irei aconchegar:
a sina de quem, errante ou não, teima em persistir amando.

2005/08/24


E depois chegam esses dias, enfeitados com a bruma inequívoca, que cheira a escárnio inteligível em todos os cérebros por aí. O que não falta são cérebros e carne, carne por aí, carne que queima, que se debate ofegante, por um lugar melhor, por mais minutos, por mais horas inventadas, estropiadas. O que não falta é carne e o que não falta é alma... nem carne, nem alma, nem coração. Nada parece faltar. Nem se vai embora esse debate cruel, entre os vales e as montanhas, não desaparecem os vales que querem chegar às montanhas nem as montanhas que se querem desprover da sua imponente e irredutível beleza só porque se sonharam vales um dia.
Esquecem-se mesmo de que são banhados pela mesma água? Que são a mesma carga positiva, em qualquer canto, a atrair a carga negativa? Em qualquer pulmão, em qualquer cristal, em qualquer punhado de terra? Quando me esqueço disto, e são muitas as vezes, em que os fiapos de tudo o que é resto estão impregnados na minha existência, em que sei que sou menos. Esqueço-me que tudo tende a anular-se para se estabilizar e que isso significa vencer.
E chegam mais dias em que sei que choro só porque parecem não existir sinapses a levarem-me até junto de ti, mas desfiladeiros, intransponíveis pelo meu constante receio, por tudo aquilo que é orgânico em mim e que, mesmo sem querer, me esmaga. E escorre o sangue em vez da metafísica, e escorrem as lágrimas em vez dos números e transpiro em vez de pensar. E sinto, de uma forma tão dementemente avassaladora, como caminhar sobre bocados de vidro cortantes, já banhados no meu sangue. E no fundo, tudo se conduz a uma demência temporária e somática que se nutre graças a um somatório enxovalhado de páginas insignificantes.

2005/08/12


Nós



O ar deslizou, levemente comprimido pelos teus lábios, que incrustaram o seu travo doce nas partículas dessa brisa que insurgiu do teu suspiro azul.
Moléculas que se conjugaram, naquela noite indiferente, com os meus receptores desprevenidos, emulsionando todos os perfumes entrenhados na minha pele geometricamente desenhada para te tocar.
Sentia algumas camadas da tua epiderme, sob os meus dentes, débeis, subjugadas à inquietação do meu desejo envolvido nas tuas pétalas polvilhadas de ternura.
E foi no céu, que os meus perfumes se cruzaram com o teu suspiro entrelaçando-se na fragilidade do meu toque no teu... então desceram sobre nós na forma da palavra amor.

2005/08/06

Beleza

Imagino-a como um ponto denso e cerrado,
e ao mesmo tempo uma mancha inteligível,
caída na graça de cada ser.
Difícil será encontrar aquele
que conseguiu transpor os seus sentidos para lá dela...

É uma estrela, é um mar, é um sol, é uma luz,
Que todos conseguem sentir: sístoles em uníssono!
Ninguém parece poder tocar-lhe,
mas todos se tocam, todos se sentam no mesmo banco de jardim com ela.
Todos caminham na rua com ela por perto.
Enroscada em cada fio de cada conjunto de cabelos,
Dorme com todos, todos aqueles com pele e ouvidos e olhos e boca.

Ouvi um segredo, que dizia,
que para conquistarmos o mundo,
bastava saber senti-la, ainda que a fingir.
Eu queria apenas soprar o mansinho oxigénio,
ateando esse fogo que reside em nela,
e que nas pontas dos meus dedos foi um dia proscrito.

2005/08/04

Visão

Vi-te: um relance do tempo, que preencheu o meu olhar.
E fossem todas as visões cascatas ascendentes,
efusões de gotas comemorando o seu esplendor,
o seu brilho intenso, que exulta como quem agride,
na soma das suas formas de beleza e de júbilo.

Não. Essa tua visão inebriante que cortou, dilacerou, sorveu
em gestos proteicos toda a inocência daquele meu dia.,
esse trespasse de luz através dos meus olhos,
enrugou o meu coração até ao lixo.
Depois sentou-se calma a olhar o mar,
o mar ébrio de tantos olhares, menos do meu,
que se arrasta ainda nas pedras, no cimento da rua.

Mas para que me ouças a voz cansada: não vou ficar por aqui!
O aqui é um limite rente, transponível.

2005/07/26

Cobri-me com esse manto,
de pele nua de mulher,
e caminhei nas ruas, leve,
pés alados como a brisa.

Reencontrei em cada passo o meu caminhar,
convidei as provocantes montras para jantar.

Já falei da brisa nos meus pés,
o ar o vento, meus vassalos,
serviram-me escaldada a sensação perdida...
...encontrar-me ali, para o mundo.

2005/07/22

MEU AMIGO

MEU AMIGO, não sou o que pareço.

A aparência
é apenas um vestido que levo,
um vestido cuidadosamente urdido
que me protege das tuas perguntas,
e a ti do meu desinteresse.

O «eu» que há em mim,
meu amigo,
vive na casa do silêncio,
e ali ficará sempre,
irreflectido, impraticável.

Não te levarei a acreditar no que digo,
nem a confiar no que faço,
porque as minhas palavras
mais não são que os teus próprios pensamentos
convertidos em som,
e as minhas obras
são as tuas próprias esperanças
materializadas em actos.

Quando dizes:
- O vento Sopra de Leste, digo:
- Sim, sopra sempre de Leste;
mas não quero que saibas
que então o meu espírito
não se ocupa do vento,
mas do mar.

Tu não podes entender os meus pensamentos,
filho do mar,
nem me interessa que os compreendas.
Prefiro continuar sozinho
com o mar.

Meu amigo,
quando para ti é dia,
para mim é noite;
mas nem por isso deixo de falar-te
da luz do dia que banha os cumes
nem da sombra cor de púrpura
que avança pelos vales;

Porque tu não podes ouvir
chegou a um terço:
as canções da minha obscuridade,
nem podes ver as minhas asas
adejando contra as estrelas;
e não me interessa que ouças ou vejas
o que há em mim.

Prefiro estar sempre
sozinho na noite.

Quando sobes ao teu céu,
desço ao meu inferno.

Então chamas-me
através do abismo intransponível
que há entre ti e mim:
- Companheiro ! Camarada !
E eu respondo: -
Porque não quero
que vejas o meu inferno.

Ficarias cego com as chamas,
e asfixiado pelo fumo.

E eu amo demasiado o meu inferno
para te deixar visitá-lo.

Prefiro estar sozinho no meu inferno.

Tu amas a Verdade, a Beleza, a justiça,
e eu para te comprazer
digo que estou de acordo contigo
e que está certo
que ames essas coisas.

Mas, no fundo do meu coração,
rio-me do teu amor por elas.

Contudo, escondo-te o meu riso,
porque prefiro rir-me sozinho.

Meu amigo,
és bom, prudente e sensato;
mais ainda, és perfeito.

Por mim, falo contigo
com sensatez e cautela, mas...
estou louco.

Oculto a minha loucura
com uma máscara.

Prefiro estar louco sozinho.

Meu amigo,
não és meu amigo.

Mas como fazer-te
compreender isto?

O meu caminho
não é o teu caminho,
e, contudo, caminhamos juntos,
de mãos dadas.

Kahlil Gibran
in O Louco

2005/07/21

Um dia estava a olhar,
olhava como quem não olha,
sem vontade nos olhos!
No entanto, nu cume deste sentido,
encontrei a tua visão...
...uma visão quieta e distante.
Fizeste-me parar sem parares um segundo!

E esse descernimento,
dessa tua convicta atenção,
trouxe-me apenas a certeza
de que não havia de partir
sem ta roubar!

2005/07/20

Sentei-me aqui, como de costume,
o costume brando de te olhar o olhar estudado,
onde gentilmente me sorriste, com esse sorriso pontiagudo...
que fere de tão intenso e que nasce e morre no teu rosto,
encostado ao vidro, despido de enredos e intrigas.

E o que posso eu esperar da vida,
deste caminho todo que percorro abstractamente?
O que posso esperar dela?
Se tudo o que ela me ensinou foi a apaixonar-me pela simplicidade destes momentos?

2005/07/17

Mutação


Expirou.
Edificado com pedaços fictícios:
a sensualidade, a confiança, o arrojo,
o balanço perfeito entre a determinação e a indecisão atraente,
uma leve dose de mistério, de inocência
e a uma inteligência exacerbada, mencionada, registada.

Pousou noutro cantinho.
Aninhou-se, borrifou umas gotas de perfume fádico
sobre os ombros nus e lisos.
Libertou o olhar hipnótico
enfeixado com estilhaços da sua existência.
Renasceu com a beleza maior e mais falsa.
Emana diariamente o seu sorriso,
onde esconde, atrás de uma cortina áspera, agulhas afiadas
para afastar todos os mundos do seu canto.

Só sei de Dezembro.
Sei das unhas de metal a rasgarem a carne das minhas costas,
do sangue a chegar a um lençol preto.
Foi o que precisei, de algo que
me fizesse sangrar como uma doença real,
para saber que tinha sido o seu fim ali.
II.

A alma vai palpitando,
numa cadência triste e sentida.
De cruel conhece o mundo,
um punhal da bruma emergido.
Nos seus cantos sente o vento,
uma manta generosa de frio.
Dos seus dedos jorra sentido,
uma mão inerte que a morte eterniza.
Saltitante e a cores,
num corpo que vagueia sem ir,
transbordante de destino
e a sorrir de sonho...

É neste dia, que a fingir, é minha.
Toco-lhe com a consciência.
Beijo-a com a sensação.
Arrasto-a comigo no perdurar do tempo.

2005/05/29

Junto ao rio passa-se de um modo desigual.
Uns passam a amar.
Outros passam presos nas suas considerações metafísicas.
Outros passam e quedam,
Dando oportunidade ao rio para os fazer sentirem-se menos.
Outros permitem-se passar indiferentes ao mundo.
Mas junto ao rio não se passa como se passa na rua.
São os ares do rio, concretos, que se tocam,
Inspirando a liberdade de cada um passar apenas com aquilo que é,
Expirando o peso de não se ter aquilo que não pode ter.
São as correntes do rio com aquilo que nelas se deposita:
Noites de amor, lágrimas, sabores, cópias perdidas de pessoas,
Todos encurralados no compasso do tempo.

2005/05/09

Encontrei-te mais uma vez, abandonado de palavras minhas... de todas as palavras já ditas e que colava em ti, nem essas que habitavam nos desertos de ninguém, te consigo voltar a dizer.

E não é de vazio que se trata: é dispersão. Dispersão de um emaranhado de teias que rarefeitas rapidamente dão lugar a outras. Que nunca chegam, porque vêm de longe, postas em gotas de água que se esvaem nos sonhos de um amanhã.

2005/04/17

Blá blá blá ao quadrado... blá blá blá prolongando-se para o infinitamente grande... blá blá blá percorrendo os trilhos do interminável. Ou nos levantamos ou não, cair caímos sempre... umas conseguimos outras não, mas qualquer preocupação é em vão, porque existe sempre a palavra não ou não.

2005/03/29

Para quê preocupar-me com este vento frio, que tece na minha pele arestas rugosas e despidas? Para quê preocupar-me quando dele me posso abrigar nas paredes pintadas de aconchego?
Pois que o vento continue sem me tocar na pele, nem nos cabelos... que continue e não me faça lembrar dos tempos em que lhe dava a minha existência em dias vazios.
Nada existe sem que para dar receba também, nem o vento. Eu dava-lhe os segredos e ele dava-me vida. Mas isso era "no tempo dos segredos". Agora ele gela-me e eu recuso-o.

2005/03/12

Sinto.
Mel a escorrer por entre granitos ácidos, íngremes, devagar... gelatinoso. Mel que se avista ao longe, de planícies distantes, abrigadas do sabor doce enjoativo e que só se adivinha desejável quando provado gota a gota, de quando a quando.
Tempo do tempo, em que a brisa olha para trás de dois em dois ou de três em três minutos. Que olha para trás e ainda assim continua a soprar, embora na soma de todos os seus conjuntos de dois ou três minutos e os seus intervalos, prossiga errada.
O gelo e o frio a rasgar estilhaços de terra, de rua e de rocha, a paralisar a seiva e o sangue. O frio e o gelo: nem o seu silêncio os salva. O frio e o gelo que continuam, como o mel e a brisa, porque o mundo parece ter-se habituado.
E se um dia tudo isto gritasse em uníssono, apertando as mãos ásperas e enrugadas do abismo?

2005/02/18

Foi ontem.

Como não escrever agora? Se estamos em silêncio mas não é no silêncio que eu penso? Se penso em ti e nas tuas palavras?
Tenho que escrever: o único gume que a espada do teu ser tem é o facto de a tua presença ser imprescindível para aqueles que te rodeiam. Não quero que te sintas melhor, quero simplesmente que continues a sentir-te como és.

2005/02/13

Tempo.

Tenho-me perdido um pouco na dimensão dilacerante do tempo. Hoje essa dimensão perturbou o meu estar desprevenido, chegou de manhã e perdurou pelas horas até agora, intermitente com ida e vinda das pessoas pela casa.
É tão raro dar-me conta dele, que quando somo as suas alterações irremediáveis sou arrastada, é possível apenas que me esconda e que me abrigue em cortinas de água sal... invisíveis. Mas tento contorná-lo, passar despercebida. Visto uma gabardina escura e apago o meu reflexo das vitrinas escuras do tempo. Irremediávelmente, ele encontrar-me-á.

2005/02/06

Para um outro ti, ainda

É ténue a superfície
que manchas de lágrima e sede,
que separa o que és do que mostras ser.
Despe-te desse mundo e mergulha:
envolve-te nas ondas do mar, envolve-te na praia
e na água que chove com o vento.
Que se não te canse esse coração,
que é novo e não velho de tormentas
como pensas acreditar.
E para ti também escrevi

Assemelho-te a um lume brando,
uma chama que esteve patente
na brasa dum carvão incandescente.
Pareces ficar-te pelo galanteio de alguns sorrisos
em noites frias de Verão.
Pareces ficar-te por dramas representados,
com um só actor, num monólogo de suspiros.
Guardas as rosas, os perfumes e os sabores aconchegantes da vida
para aquecer o dia-a-dia, aos que te rodeiam.
Tens medo. Mas lutas.
Mais que muito.
Escrevi para ti

Balança-te: pés na terra, mãos de água,
pensamentos de estrelas.
Acreditas-te para que te acreditem.
Poderia ser doutro modo?
No fundo, duvidas do que és.
Queres muito ser, demasiado,
com esses teus olhos de ver
fincados nos gestos,
como unhas cravadas na carne.
Mas os gestos balançam,
Como o mundo translada.
Com uma mão tocas nos corações
E com a outra empurra-los para o abismo.
(O abismo onde hoje caiu uma lágrima minha.)

2005/02/02

Prova.

Será que é assim tão simples medirem o nosso valor? Uma equação simples, sempre a somar ou a subtrair. Um "mais" diz que somos melhores um "menos" diz que somos piores. Não há grandes variáveis... às vezes até quero esquecer que sou humana, e que vilmente também me arrasto pelos passeios das características menos virtuosas. Menos. Levo um menos.

2005/01/24

Fotografia.

Olhei para nós. Havia passado mais de um ano desde que aquela imagem tinha sido, por nós, raptada do tempo equilátero.
Os teus olhos falavam, diziam que queriam escapar por entre o magnetismo daquela noite directamente para a seguinte noite... num passo mágico de adormecer e acordar. Diziam-me que estavas ali e que talvez um futuro inebriado trouxesse de novo aos teus olhos a vontade de falar daquele modo, para mim. Os teus olhos falaram para o futuro, falaram para que, inadvertidamente hoje, pudesse fitá-los, na ausência da tua presença, e me lembrasse que naquele segundo, todos os teus sentidos foram meus. Gritavam: Conseguirás sempre despir a felicidade como despiste hoje os teus receios ingénuos de viver.
Os meus olhos não diziam nada, encostavam-se a um infinito distante, de mágoas adivinhadas. O sorriso do meu rosto vivia o momento, os meus olhos avistavam as paisagens desérticas, ao entardecer, nas arestas geladas da minha almofada triste, nas minhas mãos que sentiriam a falta do teu toque... todo aquele que tinha absorvido antes.
A tua mão na minha cintura, a eterna inocência dos meus olhos fechados para prolongar, no percorrer do sempre, o som ondulante de um “clic”.

2005/01/16

Estou tão sozinha, por vezes... até sinto um arrepio gelado, uma brisa que chega em forma de lágrima e pergunta: como é possível?

É possível sim. Quando passeamos à noite e a olhar as estrelas as vejo sorrir de tão longe! É possível quando molho os lábios com a água salgada das tuas frases impensadas... da insignificância. É tão possível como alguém ter razão nos deixar sozinhos..É possível como doer tanto quando alguém faz por ter razão. Tanto que penso sempre estar sozinha. Nos meus pequenos interesses... estou sozinha quando leio o poema que fala do equilíbrio de Hardy-Wienberg, estou sozinha ao ouvir vezes sem conta Nessun Dorma... ou a Mercedes... a Mercedes... com o coração olhando para o sul, para a dor do seu povo, para as tardes soalheiras e as casa brancas e a paz do sorriso de muitas crianças, a paz do sorriso das pessoas sem pressa da vida. Bem me disse ela, vezes sem conta, que tudo muda, que o tempo é resoluto, que se encarrega de levar tudo. Mas ela também me disse que basta entregarmos os nossos corações para que o nosso mundo não esteja perdido.

E dói pensar que tudo isto é insignificante se não estiver sozinha. Que o que eu sou cá dentro, sou-o sozinha. Que as minhas palavras emudecem os que me rodeiam, ou que chamam apenas alguns risos de troça.

Nem sempre é assim... nem sempre ajo pensando que estou perto, às vezes estou realmente perto.

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